terça-feira, 29 de julho de 2014

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DA INDEXAÇÃO

Durante anos a economia brasileira conviveu com o problema da indexação de preços, salários e contratos. O emaranhado de leis, decretos e procedimentos que permearam esse período contaminaram não apenas as transações financeiras e comerciais, as relações trabalhistas e a elaboração de orçamentos públicos, mas também a cultura do brasileiro. Tal resultado é justificável, na medida em que nos acostumamos a conviver com essas distorções, a ponto de nossos economistas serem os maiores experts quando o assunto é inflação e a forma de lidar com esse mal.
Infelizmente, o que deveria ser apenas uma memória constante em livros de história ou então na literatura da área, volta a assombrar a economia brasileira. O PAC – programa de aceleração do crescimento, apresentado pelo governo federal, dá uma mostra de como ainda não esquecemos os anos de processo inflacionário. Dentre diversos itens constantes no programa, dois merecem destaque por justamente colocar em risco as conquistas de estabilidade de preços com o Plano Real. A proposta de fixar o reajuste do salário mínimo à inflação mais o desempenho do PIB de dois anos atrás, e também a limitação do aumento dos gastos com pessoal ao resultado do IPCA mais 1,5% ao ano.

Em um primeiro momento essas propostas podem parecer inofensivas e até positivas, uma vez que transpiram a ideia de que podem limitar a evolução dos gastos correntes, dada a ausência de vontade política para tal. Porém, a análise desses aspectos deve ser feita também a partir de um ponto de vista econômico, e não apenas financeiro.
De 1996 a 2006, o salário mínimo teve um reajuste de 250%, passando de um valor nominal de R$ 100 para um valor de R$ 350, ao passo que o IPCA evoluiu apenas 110% e o PIB expandiu-se em 27,5%. Se compararmos o reajuste do salário mínimo com a evolução da inflação, nota-se um aumento real de 66%. Além disso, se aplicássemos para o passado a regra de correção proposta no PAC, mesmo assim o reajuste do salário mínimo seria maior. Analisando esses resultados, podemos concluir que a proposta do governo seria positiva, pois teria como resultado reduzir a evolução real do salário mínimo. Como se sabe, não é possível dar maiores reajustes para o salário mínimo, pois, compromete os gastos de prefeituras, empresas e previdência. Nesse caso, vale a pergunta: qual seria de fato o problema: o reajuste, o elevado valor do salário, ou a baixa capacidade de pagamento desse valor? A resposta são todos esses fatores. O valor do salário mínimo, por mais mínimo que seja, tem impactos significativos em determinados segmentos da economia, que sofrem com a já pesada carga tributária. Na previdência o problema está relacionado com a vinculação das despesas ao reajuste do mínimo. Dá-se ganho real para as despesas enquanto espera o que vai acontecer com a economia para verificar um aumento de receita.
Ainda precisamos aceitar a ideia de que o salário mínimo deve ser visto como um salário de referência para a economia, e não o mínimo que se deve pagar, como previsto em lei. É importante ter em mente que o que determina quanto um trabalhador deve ganhar é a sua capacidade laboral de gerar riqueza, sua produtividade e seu conhecimento, e não simplesmente o que está definido na constituição. Quanto maior for a produtividade para a economia, maior é a capacidade de se embutir ganhos para as partes. Vale ressaltar que a distorção é maior ainda quando se considera conceder reajustes com base no desempenho do PIB. Um claro desconhecimento do real funcionamento da economia e da distribuição de riquezas.
Assim, a proposta de indexação do salário mínimo embute riscos que boa parte da sociedade desconhece ou se esqueceu. Porém, é uma proposta atraente, pois pode reduzir o desgaste político do executivo e do legislativo, a partir da eliminação do embate anual entre as duas casas e a opinião púbica.
O segundo item aqui destacado é o controle dos gastos correntes. É claro que se os gastos correntes aumentam mais do que o IPCA e 1,5% ao ano, a proposta do governo de fixar esse limite deve ser vista com bons olhos. Mas, novamente, pode nos aventurar em um ambiente perigoso da indexação. Primeiro que 1,5% de ganho real sobre uma inflação de 10% representa muito menos do que sobre uma inflação de 3%, perspectiva essa que se coloca para o longo prazo em um ambiente de estabilidade de preços. Além disso, fixar o reajuste dos servidores públicos a esse percentual, pode resultar em um referencial para futuros acordos trabalhistas em outros segmentos da economia, em especial no setor privado. Por fim, potencializa os impactos da inércia inflacionária, ou seja, a parcela da inflação do ano anterior que é jogada para o ano seguinte, o que pode reduzir ainda mais a eficácia da política monetária em um regime de metas de inflação. 
Diante do exposto, parece claro que uma parte influente do governo sente saudades do processo de indexação da economia que vigorava no passado. Ou então desconhece seus impactos negativos sobre a relação entre os agentes econômicos. Se queremos permitir que a economia brasileira adquira uma dinâmica mais consistente de crescimento do PIB e com foco nos ganhos de produtividade, não será garantindo em lei reajustes reais de salário o caminho mais certo. Se fosse tão fácil assim, o passado não condenaria tais medidas.

Publicado no Informe Econômico/FIERGS 05/02/2007


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