segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O pobre financia o rico

Na semana passada, foram divulgados os dados preliminares do resultado do setor externo brasileiro no fechamento do ano de 2007. De Norte a Sul comemorou-se o fato do Brasil ser um credor externo. O que isso significa? Que nossa dívida pública e privada com credores internacionais é menor do que o valor que possuímos de ativos em moeda estrangeira. Ou seja, que se de uma hora para outra for necessário pagar o que devemos, há recursos em caixa para tal. Situação atípica na história econômica do País, mas que seus benefícios e custos não estão devidamente esclarecidos para a sociedade.

Dois movimentos explicam a consolidação desse cenário. Primeiro que, nos últimos cinco anos, o setor público no Brasil tem aproveitado a farta oferta de dólares no mercado internacional para pagar seus compromissos, resgatando dívida antiga. Da mesma forma que emitiu dívida nova em uma velocidade menor, com juros mais baixos e a prazos mais longos. Sendo assim, o estoque de dívida externa do setor público caiu de forma consistente, atingindo cerca de US$ 84 bilhões no final do ano passado.
Enquanto o governo reduziu seu estoque de dívida externa, o setor privado aproveitou essa janela de mercado benigno para buscar recursos a taxas de juros baixas e emprestar a juros maiores no Brasil, ou então, como é o caso de diversas empresas, captando dólares para investir em expansão da produção. Também não deve-se negligenciar as ações dos bancos, que captaram dólares lá fora, a juros menores, para emprestar aqui, a juros maiores. Dessa forma, para o mesmo período, a dívida externa em mãos do setor privado aumentou para cerca de US$ 110 bilhões, estando hoje acima da dívida do setor público.
O segundo movimento foi a acumulação de reservas, na esteira das intervenções do Banco Central no mercado de câmbio, que colocaram as mesmas acima de US$ 180 bilhões ao final de 2007. Dessa forma, o resultado entre, de um lado, a dívida externa total e, de outro, os ativos de posse do País, notadamente reservas, é uma dívida externa líquida negativa, ou então, uma economia credora no cenário internacional. Pode parecer estranho, mas é isso mesmo. A economia emergente do Brasil, com todos os problemas de desigualdade de renda, de infra-estrutura logística, com instituições ainda não tão sólidas e renda per capita baixa, atinge uma situação no qual passa a ter o luxo, ou status para alguns, de emprestar dólares para outros países mais desenvolvidos e ricos, como os EUA. Será que eu resido em um País rico e não sabia? Estaria o governo escondendo essa realidade da sociedade? Não caro leitor, a economia brasileira continua da mesma maneira e, seguindo a máxima de que “não existe lanche de graça”, esse status de credor internacional tem seus custos.
 Para acumular reservas, o Banco Central vai a mercado comprar dólares e, em contrapartida, emite reais – não é possível transacionar com moeda estrangeira em território nacional. Com isso, ocorre um fenômeno que os economistas denominam de expansão da base monetária, ou seja, mais reais circulando pelas veias de consumo do País. Para evitar que essa chuva de moeda resulte em aumento de preços, a alternativa é emitir dívida interna para enxugar uma parte desse montante. E aqui está o lanche que não é gratuito. O juro pago na dívida interna esteve, em média no ano passado, em 11,8% ao ano. Ao passo que os dólares comprados foram direcionados para investimentos no exterior, como por exemplo, títulos da dívida interna do governo dos EUA. Supondo que a escolha do Banco Central tenha sido comprar as T-notes, títulos de dívida de 10 anos, o mais líquido e seguro no mercado internacional, o ganho de juros para o Brasil com as reservas, foi da ordem de 4,1% ao ano em 2007. Como pode ser visto, uma diferença significativa com o custo de composição dessa reserva mas, que, de alguma forma, foi útil para impedir que o real se valorizasse mais.
Esse custo é difícil de mensurar em quantidade e sua incidência no tempo mas, sabe-se com certeza que ele se materializa. Qual seria a alternativa para reduzi-lo? (1) não aumentar as reservas mas, isso teria, por outro lado, o custo de uma valorização mais acentuada do real, prejudicando a produção interna. (2) zerar a dívida externa reduzindo a necessidade de acúmulo de mais ativos. Porém, isso não é bom, pois elimina uma referência de juros e credibilidade para o País no cenário internacional quando for necessário captar recursos. Os investidores não estariam tão dispostos a comprar uma dívida de um País que não tem nenhuma outra dívida em mercado que seja possível usar para avaliação da sua capacidade como devedor. Seria um tiro no escuro. (3) reduzir os juros internos. Os maiores críticos dos juros altos descobriram que isso não é possível de fazer somente com a caneta quando assumiram o poder no Brasil. (4) aumentar o superávit primário. Sem dúvida a melhor, mais sensata e crível opção. Com maior poupança do setor público, abre-se espaço para que o Banco Central continue as intervenções no mercado de câmbio sem, com isso, implicar em emissão de dívida interna com fins de controle da inflação.
É verdade que desde Cabral o Brasil não atingia a situação de dívida externa líquida negativa, tornando-se credor internacional. Mas, prefiro dizer que, nunca na história desse País pegou-se tantos recursos dos brasileiros para financiar o consumo dos outros países.
Publicado no Informe Econômico de 03/03/2008

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